"Não se morre de esclerose múltipla, mas com ela"

28-02-2019

Melhorar a vida dos pacientes com Esclerose Múltipla é um dos focos do projeto "BladdeRunner". Iniciativa a cargo de João Medeiros que foi premiada em concurso internacional.

Foto cedida por João Medeiros
Foto cedida por João Medeiros

A Esclerose Múltipla (EM) manifesta-se em jovens adultos, entre os 20 e os 40 anos de idade. Trata-se de uma doença inflamatória crónica do sistema nervoso central que não têm cura. A visão turva, a fadiga, a falta de equilíbrio e coordenação, assim como as alterações urinárias, de humor e sensibilidade, são alguns dos sintomas desta doença autoimune.

Na EM, a bainha da mielina, canal pelo qual os neurónios enviam e recebem mensagens, é destruída. As células imunitárias, que em situações normais protegem o corpo humano de bactérias e vírus, atacam a bainha da mielina, causando inflamações. As células nervosas acabam por não ter capacidade de conduzir o impulso nervoso.

João Medeiros é o primeiro português a vencer um concurso internacional no âmbito da EM. Sobre o mote "Be You Again", o bracarense de 45 anos venceu o HackAMSterdam com o projeto "BladdeRunner". Portador de EM há 5 anos, o paciente tem participado e desenvolvido projetos que divulguem a realidade das pessoas com esta patologia. 

"Vai morrer com Esclerose Múltipla. Mas nunca vai morrer por ter esta doença" 

Quando e como lhe foi diagnosticada a EM?

Foi em setembro de 2011. Estava a lavar o terraço da minha casa quando tive a sensação de que o meu corpo estava dividido ao meio. Do lado direito tinha a sensação de que a água estava fria. Do lado esquerdo estava quente. Chamei a minha esposa. Decidimos fazer um teste rápido através de um palito. Pressionámos o palito numa perna e depois na outra. Percebi que não tinha sensibilidade nenhuma do lado direito do corpo, era como se estivesse sem reação. Por sugestão de uma amiga que é anestesista no Hospital de Braga, fui a um neurologista. Depois de realizar uma ressonância magnética, foi-me diagnosticada Esclerose Múltipla. "Vai morrer com Esclerose Múltipla. Mas nunca vai morrer por ter esta doença", afiançou-me o médico.


Sabia o que era a EM?

Não. Havia uma grande confusão. Hoje entendo as pessoas quando lhes digo que tenho EM. Muitas associam a uma doença de ossos ou confundem com a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).

A ELA, tal como a EM, é uma doença neurodegenerativa, mas fatal. Na ELA, os neurónios motores, que fazem chegar a informação do cérebro aos músculos, morrem precocemente. Os músculos enfraquecem. O doente perde a força e a coordenação. Os movimentos, a fala e a deglutição são afetados, causando paralisias.


Como é que a sua família reagiu quando soube que o João tinha EM?

No início foi complicado. A minha esposa não conseguia lidar comigo. Eu estava sempre cansado e irritado, isto porque os ciclos de sono alteraram-se com a doença. Tornava-se difícil ter uma conversa comigo. Quanto ao meu filho, ele tinha apenas 9 anos e por isso não percebeu do que se tratava.


"O suporte familiar é tudo para as pessoas que têm Esclerose Múltipla."


Houve alguma fase da sua vida em que renegou a situação em que se encontrava?

Há muita coisa que muda na nossa vida. Começamos a questionar-nos: "Porquê? Porque é que me tinha que acontecer isto?". Às vezes, o cansaço e a fadiga crónica, sintomas recorrentes da doença, faziam-me pensar em desistir. O processo de adaptação e recolha de informação fez-me perceber que a vida continua. Percebi que adoro viver porque tenho dois pilares fundamentais na minha vida: a minha esposa e o meu filho. Por gostar muito deles e pelo facto de querer acompanhar o crescimento do meu filho, como qualquer outro pai, decidi não desistir. O suporte familiar é tudo para as pessoas que têm EM.


O que mudou na sua atividade profissional, com o aparecimento da doença?

Pouco. Na altura estava num processo de transição. Há 12 anos que era gestor de contas, um emprego muito desgastante. Lidava com produtos de risco, como obrigações e a bolsa, o que fazia com que andasse sempre stressado. Decidi então aventurar-me num novo emprego. Entrei para uma companhia de seguros, na qual ainda permaneço. Hoje não estou a 100 por cento na companhia, pois estou envolvido em muitos projetos que decorrem da minha patologia.


Preocupa-o o facto de o seu filho ter EM, visto que esta doença pode ter predestinação genética?

Na minha opinião, a EM não têm predestinação genética. Isso é um tabu. Esta patologia decorre de uma reação natural do próprio organismo. Não me preocupa que o meu filho venha a ter esta doença. Espero que não a tenha, se tiver não será porque o pai a tem. Até porque eu não tenho em termos de EM nenhum historial familiar.


Como é que se tornou associado e, mais tarde, presidente da Associação Todos Com Esclerose Múltipla (TEM)?

A TEM é uma associação que nasce em 2008, em Braga. Esta tem como missão promover o apoio aos doentes e familiares de doentes neurológicos, em particular os de EM. Chego à TEM em 2012, depois de ser remetido pelo Hospital de Braga, onde estava a ser acompanhado. Passados alguns anos, torno-me presidente interino da TEM na sequência da demissão do atual dirigente. Nas últimas eleições não voltei a recandidatar-me, porque assumi com a SANOFI, um dos líderes na indústria farmacêutica, o compromisso de representar todas as associações portuguesas de EM no concurso HackAmsterdam.


"Nós somos prioritários, não nos conseguimos controlar."


Participou, recentemente, no HackAMSterdam, arrecadando o 1º lugar com o projeto "BladdeRunner". Em que consiste o projeto apresentado?

O que propus foi uma aplicação com geolocalizador de casas de banho, assim como um 'Priority access card´ digital, que deve ser acionado sempre que exista um conjunto de pessoas à nossa frente para aceder ao WC. Porque nós somos prioritários, não nos conseguimos controlar, e por isso devemos ter o direito de passar à frente. A aplicação vai funcionar como um "diário da bexiga". Ou seja, durante 2 meses, o utilizador, sempre que for à casa de banho, regista essa informação na 'app'. A partir daí, ela vai imitir alertas com antecedência do período crítico do paciente. Esta previsibilidade comportamental vai permitir que os doentes vivam mais descontraidamente, proporcionando um aumento da autoestima dos mesmos. A busca por restaurantes que correspondam às necessidades alimentares especiais dos pacientes, bem como a mobilidade, são outras valências desta aplicação. Esta pretende abranger cerca de 20 milhões de pacientes, pois será útil também para doentes com Parkinson, Alzheimer, cancro da próstata e da bexiga. A aplicação vai chegar ao mercado com duas versões: a gratuita e a paga. Na versão gratuita vai estar disponível o geolocalizador e o registo diário de afluência ao WC. Na versão paga serão incluídas as funcionalidades disponíveis na versão gratuita e outras que ainda estão em desenvolvimento. O lucro obtido com a versão paga reverte em igual percentagem para mim, o criador, e para ajudar associações portuguesas de EM escolhidas pelo utilizador.


O blog "The world versus a multiple sclerosis", plataforma sobre doentes ou pessoas inspiradas a participar na luta contra a EM, lançou à população o desafio de partilhar momentos específicos proporcionados pela patologia, para criar um filme. Sendo júri deste concurso, quais são os objetivos primordiais do mesmo?

Estamos a sugerir aos pacientes e cuidadores que partilhem momentos proporcionados pela EM. Vamos selecionar os melhores e formar um filme sobre esta patologia que afeta dois milhões e meio de pessoas em todo o mundo. Eu próprio participei, ainda que não entre em concurso. Partilhei o momento em que decidi comprar um animal de estimação para desviar as atenções de mim. Quando descobri que tinha EM, a minha família concentrava-se muito em questionar-me se me sentia bem ou se precisava de alguma coisa. Era saturante. Então, decidi comprar um cão. O animal adquiriu a atenção de toda a família, inclusive a minha. Porque ter um animal implica responsabilidades: alguém tem que o alimentar, passear e levar ao veterinário.

"A minha esposa costuma apelidar-me de "rato de laboratório."


Submete-se, regularmente, a exames e/ou testes científicos, que possam vir a clarificar mais sobre a doença?

A minha esposa costuma apelidar-me de "rato de laboratório". Quando me foi diagnosticada a patologia, prontifiquei-me a ceder todas as análises e exames que fizesse para serem alvo de estudos, no âmbito da neurologia e da EM. É do meu interesse. Eu sei que tenho uma doença crónica, e como tal não há cura. Por isso, a ciência aposta no retardo da progressão da patologia, e os meus exames podem ajudar nessa missão.

"A Esclerose Múltipla é a doença das mil caras."


Estudos demonstram que um doente com EM gasta em média 10 mil euros, por ano, em medicação. No caso dos pacientes com doenças neurodegenerativas, o Estado português suporta esse encargo?

Sim. Eu não pago nenhuma da medicação que adquiro todos os meses no hospital. Um doente crónico, em Portugal, não paga a medicação, nem os cuidados médicos resultantes da patologia. Cada doente tem sintomas diferentes, o que leva a que façam tratamentos também distintos. Esta é a doença das mil caras. No meu caso, tomo vacinas de dois em dois dias, que se não fossem suportadas pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) me custariam 50 euros cada uma.


Acha que os portugueses estão bem informados acerca desta doença?

Não. Vivemos hoje em dia naquilo a chamamos de "Aldeia Global". O excesso de informação a que o ser humano é submetido leva-o à dispersão. Por muito que eu queira divulgar a EM, através de campanhas e entrevistas, isso só vai ter impacto no momento em que é divulgado. A longo prazo, não tem impacto nenhum. O povo português é um povo conformista. Só procura pela informação quando precisa dela, ou seja, se um familiar nosso contrair a doença de EM vamos pesquisar sobre o assunto, se não for ninguém próximo de nós ignoramos a busca de conhecimento.


Já passou por alguma situação constrangedora por causa da doença, e que as outras pessoas não compreenderam?

Sim. No início deste processo de convivência com a EM, por vezes, enquanto falava com as pessoas na rua, desequilibrava-me. Numa altura, cheguei a cair no chão porque, perante a sensação de desequilíbrio, tentei responder com a perna, de maneira a estabilizar o corpo. A perna não respondeu ao impulso enviado pelo cérebro.

| Entrevista realizada em novembro de 2017

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora